O processo penal como ritual vazio?

Em decisão publicada no dia 16 de junho deste ano, o ministro Cristiano Zanin, no julgamento do RE 1.555.431/RS, deu provimento a recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. A controvérsia girava em torno da validade de uma audiência de instrução realizada sem a presença do Parquet (Ministério Público), cuja ausência foi oportunamente registrada pela Defesa, representada pela Defensoria Pública do Estado. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia reconhecido a nulidade do ato, por violação ao sistema acusatório e ao art. 212 do CPP. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF,) por decisão monocrática, entendeu o contrário.


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Quando o contrassenso vira possibilidade
A ausência do Ministério Público em audiência de instrução não é mero detalhe:
é violação estrutural. Permitir que o juiz colha prova sem a presença da acusação desequilibra a paridade de armas e fere o modelo acusatório. O que deveria ser nulo tornou-se admissível por força de precedentes que naturalizam o inaceitável. Quem acusa quando o acusador está ausente?


Sistema acusatório como ornamento
Ao afirmar que não houve prejuízo concreto, o STF desloca o foco: trata a estrutura do processo como algo acessório, quando ela é o próprio conteúdo das garantias. O sistema acusatório não é forma vazia; é limitação de poder. Ignorá-lo em nome de uma suposta “eficiência” é aceitar queimar etapas em um julgamento equânime. O risco não é apenas jurídico: é civilizatório. A condenação, por si só, não representaria prejuízo concreto?

Juiz que tudo faz, tudo decide, tudo conduz
Quando o magistrado substitui a acusação, conduz sozinho a audiência e produz a prova, rompe-se a imparcialidade que justifica sua função. Ainda que fosse formalmente possível – com o que não se concorda –, o fato é alegórico: concentra o processo inteiro em um só polo. O réu não enfrenta apenas o Estado-acusador, enfrenta o próprio Estado-inquisidor. Ruína do contraditório, enquanto corolário do devido processo legal.


Jurisprudência elástica, garantias comprimidas  
A decisão de Zanin não está isolada. A menção a precedentes do STF revela um movimento de erosão das balizas do processo penal. Não se trata de um desvio pontual, mas de uma jurisprudência que se flexibiliza conforme o contexto. Hoje se admite o que ontem se rechaçava. A instabilidade dos princípios compromete a previsibilidade do Direito.

STF: da exceção legitimadora ao descuido reiterado
A crítica não é nova. Pelo menos desde o julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão), parte da doutrina alertava para o avanço (ou perpetuação?) de uma racionalidade de exceção no STF. O problema não está apenas nas decisões, mas no padrão que se forma a partir delas. A Corte Constitucional não pode(ria) naturalizar a violação das formas, sob pena de se tornar cúmplice da arbitrariedade.


Demonstração de prejuízo e inversão principiológica  
A exigência de demonstração concreta de prejuízo, nesses casos, inverte a lógica das garantias. O vício é estrutural: quando o órgão acusador se ausenta da instrução, a nulidade deve ser reconhecida de imediato. Transferir à Defesa o ônus de provar concretamente o dano é distorcer as regras do jogo – e tornar a paridade de armas refém de um pragmatismo judicial supostamente desejável. Ao menos da condenação se deveria presumir prejuízo, não?!

Olhar que desperta: ainda é tempo
O que está em jogo não é um ato isolado, mas a concepção de justiça que ele revela. O processo penal não pode ser palco de improvisos funcionais. É tempo de olhar com atenção para o exercício da jurisdição e exigir limites. A crítica não é afronta – é cuidado. Ainda é possível reconstruir os contornos do que nos protege. Um mesmo processo para todos e cada um. Mas é preciso ver. É preciso querer ver.


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Guilherme Pitaluga

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